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25 de junho de 2010

O Amor é Profilático

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Escutou a palavra e notou que era bonita. — Profilático – repetiu. Sussurrava. Prolongava as sílabas. Não queria se desprender do gozo. Agia como se fosse escritora e naquele momento estivesse se exercitando no oficio de investigar a riqueza semântica do vocábulo.
“Profilático, profilático."
Os olhos fechados pareciam procurar a direção das origens do mundo, dando-me a impressão de que aquela palavra recém-descoberta possuía o poder de lhe devolver ao estado primeiro das coisas, ligando-a novamente a um paraíso perdido, findado, porque esquecido.
O rosto testemunhava o espírito compungido. A fala mansa e repetida sem ansiedade era uma espécie de prece, palavra que ordena, direciona, redime.
Nesse ímpeto de encantamento e paixão pela palavra, ela resolveu concluir, ainda que absorta em inexata compreensão: — O amor que sinto por Jorge é profilático. - Repetiu a frase como se quisesse investigar os desdobramentos práticos daquele amor e quem sabe, assim, compreender o significado da palavra.
A doçura na voz emoldurava a expressão. Conferia-lhe um contexto de amabilidade nunca antes alcançado por outro vocábulo. A palavra a atingia e a afetava de maneira inesperada e surpreendente.
Eu também escutei sem entender.Mergulhei no mistério do desconhecido termo e não o quis por sua lógica. Acolhi a força sonora e musical, e só. Não tive coragem de perguntar, nem tampouco procurar saber o que significava “profilático".Temia atentar contra a sacralidade do termo. Abracei a sonoridade e a assumi como verdade.
Amor profilático deve ser um amor cheio de profundidade, empenho, lisura. Manhãs de inverno e luz tímida de lamparina acesa. Mulher à beira de um fogão alimentado de lenha seca e café deslizando suavemente pelo coador de pano encardido.
A vida de um amor profilático deve ser assim. Coisas lindas costurando as feiúras do dia, cobrindo de bordados cheios de minúcias os avessos e suas ranhuras. Amor que recobre de brilho a estrutura opaca da existência e transforma o cotidiano da vida num acontecimento único, fato que não merece cair no esquecimento.
Profilático deve ser coisa bonita demais para que a gente possa compreender. Amor de romance, bíblico, fiel. Amor de Oseias, o profeta que, depois de traído, encontrou a traidora sendo negociada numa feira de escravos. O amor profilático o encorajou a comprá-la. Reassumiu como esposa a traidora perdoada e, sem muitas perguntas e respostas, levou de volta para casa aquela que do coração nunca partira. História mais linda neste mundo nunca houve.
As religiões nos ensinam que o nome de Deus é impronunciável. O motivo é simples. Ele é grande demais para caber num conceito. Decido, mesmo sem saber teologizar: Deus é profilático. É palavra que não aprisiono. É mistério que prevalece a me sugerir belezas, bondades e oblações.O amor é uma experiência religiosa. Disso não tenho dúvida.
Heleonora ama com amor profilático. Amor que não cabe no tempo. Amor tão grande que a palavra não sabe dizer, assim como o nome de Deus.“Profilático” tem uma sonoridade que aprecio, assim como aprecia também Heleonora, a ponto de adjetivar com ela o seu amor por Jorge. Ela sabe das coisas. O empenho do amante deve estar em nunca esgotar o mistério da criatura amada.
Sobre isso, intuo: O amor não esgota o que ama. O amor sobrevive de saberes e não saberes. O que olho ainda não vejo. Olho com descanso de pausa, porque sei que o mistério ainda vai me sorrir. Eu espero.
As miudezas esparramadas pelos cantos de minhas lembranças me conduzem ao altar de minhas predileções. A memória é o campo do amor preservado. É nela que a autoridade do discurso humano encontra a raiz mais sustentadora.
O que falo de mim é fruto do que memorizei sobre o vivido. Por isso não posso prever o futuro. Para o futuro ainda sou surpresa, assim como o amado é para o amante. Sou o passado passando, ficando, misturando e congregando as funções miúdas do presente, futurando minhas causas e esperanças.
A vida é profilática. Afirmo sem saber. Afirmo sentindo. Tenho medo de consultar o dicionário e descobrir que "profilático" não significa o que sinto quando digo. Esta falta de conexão me faria mergulhar na dor profunda de não encontrar o que procuro. "Profilático" é uma palavra onde repousa o medo de morrer sozinha. Berço onde debruço minha orfandade de amor de homem e a faço dormir.
Não me importa o significado que o autor decidiu registrar. Ele não escutou a palavra no contexto da frase de Heleonora. Ele não viu o seu amor por Jorge. Não presenciou o tremor dos lábios no momento da confissão.
Ele não sentiu o que senti. Não acreditou no que acreditei porque não ouviu a voz tão crente da certeza que afirmava.
O dicionário não é nada perto do amor que sentimos. Os termos estão todos lá, mas a vida, a verdadeira vida, está todinha aqui, neste espaço de não saber, neste espaço de só sentir, ignorante, mas vivo.
Eu sou a vida dos vocábulos. É em mim que eles se desdobram. Heleonora é profilática, assim como a palavra, Ela nutre nas entranhas de sua alma a solução de que o mundo precisa — o amor. A espera por Jorge; os lençóis brancos sendo quarados sobre a pedra da caixa-d'água; a vassoura de piaçava levantando poeira, anunciando que a ordem das coisas ainda é possível; tudo é profilático. O amor, a parte, o meio, a totalidade.
O todo do mundo se amontoando nos móveis simples da sala de estar, lugar onde nunca alguém está.
Na parede, o quadro e seu silêncio a segredar os gritos do passado. O amor conjugado no dia escolhido, entre tantos. O casamento mais pobre do mundo.
Nenhum luxo, além do amor entre os dois. Um bolinho de farinha de trigo recheado com calda de rapadura, e só. Noiva com vestidinho branco, tecido ralo de tão surrado, mas resguardando um corpo impregnado de felicidade nobre. Nenhuma grinalda na cabeça. Apenas o adorno de umas florinhas miúdas, mas viçosas, recolhidas por gente que sabe apreciar as coisas bonitas que o mundo nos oferece sem preço.
O noivo e seu terno de defunto. Solução possível. São roupas que chegam entulhadas em sacos de linhagem. Doações feitas por pessoas desconhecidas. Caridade que viaja distâncias e que desconhece a serventia do que é doado.
Linalva, do centro assistencial, fez questão de recolher o terno e entregá-lo pessoalmente ao Jorge. Nenhum arranjo foi feito. Os comprimentos não cumprem as obrigações. Ou porque sobram, ou porque faltam. Mas o que no quadro não falta é o sorriso que confirma o sacramento, é o amor profilático entre Heleonora e Jorge, a aura sobrenatural que repousa sobre a imagem e que o tempo não domina.
A vida é assim. O que a matéria não supre o amor ajeita.
A vida vale a pena. Eu sei. O quadro na parede não se esquece de me dizer tudo isso. Já valeu ter vivido Para ver esta pobreza de perto e saber que ela está costurada por um amor que tem nome esquisito. Encontrar gente feliz renova minha fé em Deus.

                                          Padre Fábio de Melo in: Mulheres Cheias de Graça
* Para saber mais:
Profilático: adj. Relativo à profilaxia: medida profilática. (Var.: profiláctico.) Preventivo.

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