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30 de novembro de 2010

Nunca tiveram muito a se dizer 

Não se falavam. Desde a noite de núpcias, quando olhando o corpo recém-possuído ele se expressara de forma pouco nobre, ela deixara de lhe dirigir a palavra. 

Em silêncio, sem que jamais um se dirigisse ao outro, viveram juntos 50 anos. Data em que seus filhos, netos, noras e genros organizaram grande festa comemorativa, reunidos todos para enaltecer os patriarcas. Erguia-se justamente o brinde, de pé a família ao redor da grande mesa, quando pela primeira vez, em voz alta e clara, ela o chamou pelo nome. C.

omo uma bala, como uma faca, a palavra enterrou-se no peito do homem, abrindo dupla ferida. Pois embora sendo seu nome, pronunciado por aquela boca não o representava, a ele que nunca mais dera à mulher o direito de nomeá-lo. Assim ela o desrespeitava frente à descendência. Pálido, apoiou-se com as mãos espalmadas sobre o tampo de mármore, e num impulso assassino revidou, sibilando entre dentes o nome da mulher. 

Ela cambaleou, levou a mão à boca como quem ampara uma golfada de sangue. Mas já a família batia palmas, e a sala toda estremecia ao som do coral doméstico que entoava Parabéns Pra Vocês.

Marina Colasanti -in Contos de Amor Rasgados

15 de março de 2010

A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos e a não ter outra vista que não as janelas do redor. E porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E a medida que se acostuma, esquece o sol, o ar, e esquece a amplidão. A gente se acostuma a acordar de manhã de sobressalto porque está na hora.
A tomar café correndo porque está atrasado. A comer sanduíche porque não dá tempo para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido.
A gente se acostuma a abrir o jornal e ler sobre a guerra. E aceitando aguerra, aceita os mortos e que haja número para mortos. E, aceitando osnúmeros, não acreditamos nas negociações de paz. E, não aceitando asnegociações de paz, aceita a ter todo dia, o dia a dia da guerra, dos números de longa duração.
A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisa tanto ser visto. A gente se acostuma a pagar por tudo o que se deseja e o de que se necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com o que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagará mais. E a procurar mais trabalho para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra. (...)
A gente se acostuma a poluição. À salas fechadas de ar condicionado. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural.
Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir os passarinhos, a não ouvir o galo de madrugada, a não colher fruta no pé.
A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor daqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo, conformado. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no final de semana. E, se no fim de semana não há muito o que fazer, a gente vai dormir cedo e fica satisfeito porque, afinal, está sempre com o sono atrasado.
A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta e que, gasta de tanto se acostumar, se perde de si mesmo.
(Marina Colassanti)